O desespero nosso de cada dia

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Por: Fernando Morgato de Oliveira.

Já reparam como nós homens somos PATÉTICOS quando o assunto é relação – em todas as esferas? Somos inseguros, despreparados, desprovidos de qualquer discernimento quando o assunto é amor e, ainda por cima, tentamos passar a imagem de que somos o centro do universo e as pessoas mais seguras da Terra. Ledo engano…

Muito se fala das inseguranças femininas, porém, pouco se discute a respeito das mascaras que nós homens usamos cotidianamente para esconder nossas inseguranças e receios afetivos, emocionais e sociais.

Por exemplo, quando era mais novo fui “ensinado” pelos meus irmãos que homem não chora. Nunca refleti a respeito dessa afirmativa comportamental. Hoje, em uma relação estável, que perdura aí seus três anos, cheguei a conclusão que homens não só choram como são extremamente depressivos em suas relações (em todas as esferas: familiar, amorosa, profissional etc.).

Essa carapaça que todo homem (que se afirma pela lógica ocidental, isto é, machista, sexista, misógino – exceto quando a satisfação é pessoal – etc.) se vale para justificar sua postura de “macho alfa”, “comedor”, “o pica das galáxias” nada mais é do que um mecanismo de defesa para não externalizar sua real representação: a de uma criança acuda e pressionada pelos ditames sociais e culturais. Hoje percebo o quanto essa educação (e cultura) foi prejudicial para o meu desenvolvimento como ser humano, sujeito ativo etc.

Às vezes imagino o quanto teria sido produtivo se minha família ao invés de me ensinar a odiar as mulheres e a tratá-las como seres subservientes (explorando minha mãe, minhas irmãs e as demais mulheres que passaram pela minha vida) tivessem me ensinado a amá-las e respeitá-las – exatamente como os mandamentos religiosos (os quais minha família segue e eu abdiquei) determinam.

O que me impressiona não é o fato de nós homens sermos o que somos – ou o que nos tornaram. O que me impressiona é ver o quanto homens como eu, que criaram consciência dessa realidade nefasta e violenta, são negligentes com suas companheiras de vida (mães, sogras, esposas, irmãs e afins…). Impressiona-me o quanto alguns, que tem conhecimento suficiente para discernir a respeito dessas violências, tentam justificar suas grosserias com o simples argumento de que estão em desconstrução. Ora, desde quando a desconstrução é subterfúgio para legitimarmos nossas imbecilidades? Desde quando “estar” em desconstrução é motivo para reforçarmos o machismo – machismo esse institucional e reconhecido por nós? Desde quando a desconstrução é motivo para fazer jogos de palavras e inverter a “Ordem do Discurso” em benefício (sexual ou afetivo) próprio?Desde quando “estar” em desconstrução é motivo para ignorar o fato de que exploramos explicitamente as mulheres que nos circundam?

Vejo essas ações/comportamentos com uma doença psicossomática. Sabemos que isso é algo criado pela nossa estrutura cognitiva, que elabora pensamentos e esquemas disfuncionais que geram sofrimento e acabam contribuindo para aparição de sintomas físicos. Vale ressaltar que assim como na medicina as doenças psicossomáticas existem e precisam ser tratadas. Entretanto, insistimos em ignorar este fato (fardo) simplesmente porque, até o momento, é cômodo para nós ocupar esta posição – privilegiada e hierárquica.

Nos dias de hoje fala-se muito sobre os avanços das mulheres na luta por seus direitos – apesar dos inúmeros esforços elaborados, novamente, por nós homens de atrasá-las – no processo sócio-histórico-político democrático. Entretanto, pouco ou quase nada se vê – no que não quero chamar de avanço dos homens para não retirar aqui o protagonismo feminino – na luta pela igualdade de gênero; na desconstrução de paradigmas que corroboram com o aumento dos marcadores da diferença social; na luta contra o racismo etc.

Penso que nosso potencial como seres humanos nos permite ir além do que imaginamos ou aceitamos como “Verdade”. Mas nós, homens, ainda resistimos e não refletimos a respeito das nossas posições claramente privilegiadas e, por vezes, camuflamos nosso medo com ataques histéricos e argumentações vazias e sem fundamento. Precisamos abandonar a representação infantil que temos de nós mesmos e elaborarmos uma transvaloração dos valores; ressignificarmos essa imagem de “homem”; e quem melhor do que as mulheres (os gays, os trans e afins) que, a duras penas, tem-se empoderado para nos ajudar a reconstruir esse modelo de homem?

Nós, homens, poderíamos ser menos infantis, beberrões, frescos, arrogantes e aceitarmos que esse modelo de “homem” que durante tanto tempo adotamos se tornou obsoleto – e bastante démodé. Eu, como qualquer outro ser humano, quero um mundo melhor, mas isso só será possível quando pararmos de acreditar que nós, homens, somos os únicos que temos as únicas respostas.

 

A cultura do ódio, a cegueira branca e os idiotas

Reprodução.

Reprodução.

Por Rafael Araujo.

Tenho ficado muito impressionado com o acirramento dos humores e o ódio ao PT. Tentei abaixo escrever uma reflexão sobre esse fenômeno. Sei que o texto é longo e que poucos aqui conseguirão ler. Também sei que alguns que lerem não se reconhecerão, embora seja exatamente para esses que esteja falando. Mas essa é a maldição do cientista social, quando um problema salta ao olhar sociológico ele precisa ser digerido e ruminado. Se meia dúzia de leitores encontrarem sentido, o texto já terá servido a alguma coisa.

A cultura do ódio, a cegueira branca e os idiotas

O termo “idiota” era usado para designar aqueles indivíduos na Grécia antiga que preenchiam os requisitos para o exercício da cidadania, mas que não se ocupavam da coisa pública, que se interessavam apenas por seus projetos pessoais. Trata-se do cidadão privado, aquele que se dedica ao desenvolvimento de uma habilidade pessoal e deixa de lado a cidade, deixa de ocupar-se com a pólis. O termo acabou, como muito acontece, ganhando outras conotações. Mas se mantivermos em mente seu sentido atual e o significado de origem, perceberemos quão útil e apropriado é chamar de idiota aquele que se interessa apenas pelo seu trabalho, deixando de lado a política e a cidadania.

Tenho estado bastante curioso por compreender o fenômeno do antipetismo que estamos vivendo nessas últimas semanas de campanha eleitoral. Certamente há quem tenha boas razões para votar no candidato do PSDB, Aécio Neves, e elas devem ser respeitadas; mas há uma questão mais profunda que tem ocorrido com o fenômeno do antipetismo, um ódio nada propositivo que tem tomado conta das pessoas e revela um problema mais complexo, que a mim, como cientista social, interessa especialmente.

O ódio ao PT precede os escândalos de corrupção, de modo que atribuir o ódio a isso seria uma explicação insuficiente. Durante a campanha de segundo turno, graças ao fato dos dois candidatos terem chances reais de chegarem à presidência da república, o fenômeno se agravou. Arriscarei aqui algumas linhas e espero que sejam motivo de reflexão a quem esse texto chegar.

O ódio ao PT pode ser examinado pelo menos a partir de três grupos de causas: 1) o desenvolvimento histórico dialético ocorrido no Brasil desde a colonização e a forma como a luta de classe se constituiu no país; 2) a presença hegemônica da mídia tradicional e o poder simbólico que possui; e 3) a incapacidade de pensamento da população e o seu modo dicotômico de situar-se no mundo.

A primeira causa está na explicação histórica da forma como nossa sociedade foi construída, sob os alicerces da casa grande e da senzala. Os argumentos de Gilberto Freyre, e de tantos outros autores que se prestaram a estudar a formação da sociedade brasileira, indicam uma explicação para o fato de ainda sentirmos a presença do patriarcado em nossa pele, o resquício de um senhorio que se sente proprietário de tudo, que quer ver a todos sob controle. Esse princípio não desapareceu, ele foi modificando-se ao humor do tempo, adaptando-se aos avanços tecnológicos e aos ares da modernidade, mas em nenhum momento o sentimento de inquietação do senhor ao ver seus escravos festejarem na senzala deixou de existir. Essa especificidade da sociedade brasileira, que vem junto da miscigenação e da pluralidade cultural, não foge da lógica descrita no pensamento dialético. Existe um ódio de classe que mantém dois grandes grupos distintos e coesos no discurso, mas um único grupo que concentra a propriedade. Esse ódio de classe é difícil de aceitar nos tempos que vivemos. Já não se fala em comunismo senão como uma quimera, o capitalismo representa um sistema tão absoluto que a própria luta de classes fica obscurecida. Nesse contexto, falar de ódio de classe parece um devaneio, mas não é. O conceito é ainda preciso por reunir tantas práticas irrefletidas e contraditórias pelas quais estamos passando. É justamente pela sua negação que demonstra sua eficácia.

A ideologia se dissipa em discursos e práticas, come pelas beiradas, demarca territórios e realiza distinções sociais. Ao reconhecermos as significativas mudanças ocorridas no país nos últimos anos, vemos o ódio se acirrar como uma resposta espontânea à perda de distinção e de privilégios de determinado grupo social. Nesse sentido, a modificação na estrutura de classes e o passado patrimonialista seria uma possibilidade de explicação do ódio, mas não a única. Diante dessa realidade, o idiota é aquele que se interessa pela recuperação de seus privilégios, pelo sucesso de seus projetos pessoais, assumindo uma perspectiva individualista e burra ao mesmo tempo. Individualista porque perde de vista a coletividade de cidadãos que se beneficiaram com as mudanças, e burra porque acredita que as melhorias sociais são ações independentes, que não o afetam positivamente. Essa burrice que leva alguns a praguejarem contra o suposto assistencialismo do governo ignora a base de discussão dos direitos humanos e o modo como ocorre a dinâmica do capital, baseada essencialmente na produção e no consumo.

A segunda causa é a cobertura que os meios de comunicação têm realizado dos fatos cotidianos de nossa política. Essa cobertura corresponde às expectativas desse mesmo eleitorado idiota, porque estão interessados no consumo das informações. São empresas, e como tal procuram o lucro. Se os espectadores, ouvintes e leitores são a resultante histórica de um longo processo de despolitização e banalização da política, esse discurso será reforçado a todo custo, com o claro intuito de manter o índice de audiência e vendas. O fato de essas informações serem voltadas para o consumo já revela sua natureza: são informações efêmeras, voltadas ao desaparecimento. Não são informações que articulam o conhecimento do mundo, que acrescentam criticidade e contribuem para o estabelecimento do homem no mundo. Essas informações de superfície, que em nada aprofundam a realidade política, cumprem o papel de serem mercadorias consumíveis. São, portanto, oportunidades de distração do homem de si mesmo, ou dito de forma mais direta, são fontes de alienação.

Por exemplo, um dos temas que ocupou as propagandas eleitorais esse ano foi a “nova política” ou a sua versão atualizada, a “mudança”. Os veículos de comunicação de massa e a população despolitizada trataram de propagar essa vontade do eleitorado. Ora, nem os mídia e nem a população em geral sabem como funciona a máquina do Estado. Não compreendem o funcionamento das instituições e o papel da burocracia. Não têm dimensão da rede de atores envolvida a cada processo decisório, as forças em disputa e o tênue equilíbrio que mantém a engrenagem funcionando. A população em geral, porque não se envolve com a coisa pública, não compreende o valor das instituições políticas e o fato de que essa complexa dinâmica é necessária para assegurar o mínimo de lisura ao sistema. Então, diante da crítica ao Estado cotidianamente construída pelos profissionais da mídia e repetida quase que de forma infantil pelo eleitor despolitizado, deduzimos que “a nova política” não passa de uma política sem corrupção. Esse é o máximo que essa parcela da população consegue definir como um programa de mudança, uma política sem corrupção. Essa reivindicação é mais do que justa. É tão justa quanto utópica, mas nem por isso deve deixar de ser buscada. Mas a rigor, essa vontade de uma outra política quando se resume a uma vontade de pôr fim a corrupção acaba por simplificar ainda mais as coisas e reforçar o afastamento dos indivíduos da coisa pública. O eleitor e cidadão passa a resumir todos os problemas ao problema da corrupção. Esse é o exato cálculo que a grande mídia faz: eleva-se a corrupção ao status de mal maior da humanidade. É isso que vemos nos comentaristas dos jornais todos os dias. Na sua tentativa de tutelar a opinião do espectador, ouvinte e leitor, acabam reforçando a ideia de que ao preocupar-se com a corrupção dos governantes ganha-se o título de cidadão. A fórmula é tão simplista que faz com que esse mesmo cidadão se esqueça dos tantos gestos corruptos que comete ao invadir a ciclovia; ao ultrapassar o semáforo vermelho; ao parar em local proibido ou em vagas para idosos; ao inventar atestados falsos para a sua declaração de ajuste de imposto de renda e tantas outras pequenas improbidades. A mesma irreflexão faz com que esses cidadãos combativos creiam piamente que o dinheiro que se perde com a corrupção e com o sustento de mordomias dos políticos seja mais do que suficiente para sanar todos os déficits da saúde, educação, mobilidade, violência e tantos outros pontos fundamentais para atingirmos o estado de bem estar social que desejamos. São contas simples que a simplificação do pensamento impede que sejam feitas.

A verdade é que a grande mídia soube selecionar muito bem os casos de corrupção a serem divulgados. Nos últimos debates a candidata Dilma Rousseff trouxe à tona alguns dos tantos escândalos que não foram investigados, o mesmo tem feito a mídia alternativa. Essa seleção realizada pela mídia tradicional foi muito eficiente na associação da corrupção ao partido dos trabalhadores, se valendo da contradição de que o mesmo partido construiu toda sua história sobre os alicerces da ética e no momento que se viu como governo acabou por jogar o jogo que ali estava e que tanto criticava. Ora, as pessoas não aceitam as contradições no dia a dia, vivem como patrulheiras umas das outras, fiscalizando seus discursos e atitudes na esperança de identificar os lapsos que serão cometidos. Isso é muito ruim, porque as ações passam a ser direcionadas a denegrir o outro com o simples objetivo de uns parecerem ser melhores que outros. As pessoas passam a fazer um cálculo de mazelas ao invés de potencializar suas virtudes.

Um processo semelhante ocorreu com o PT nos últimos anos. O ódio de classe e a cobertura dos meios de comunicação tradicionais conseguiram reduzir o problema da política à corrupção e associa-lo a um único partido. O eleitorado, se perguntado, reconhece que o problema da corrupção não é exclusividade de um único partido, mas o mesmo eleitorado usa dois pesos e duas medidas, penalizando apenas o PT. O idiota, nesse caso, é aquele que encontra nos “petralhas” um motivo para sua auto-afirmação, um mecanismo de enxergar-se como melhor e, ao mesmo tempo, de obscurecer os lapsos que comete no dia a dia. Além disso, é idiota aquele que não procura de forma ativa as informações sobre a trama da política e deixa-se informar pelos veículos de comunicação de massa. São esses mesmos veículos que vêem na simplificação e imparcialidade um negócio, uma fonte de renda, que estão construindo uma opinião pública frágil e, com isso, prestando um desserviço à democracia. A informação precisa descer às profundezas da política para que seja digna, do contrário se reduz a superficialidades e transforma o eleitorado em massa de manobra.

Por fim, a última causa que apresento para tentar compreender o ódio e a cegueira branca que estamos presenciando é a incapacidade de pensar, exatamente como Hannah Arendt a concebe. Há nos homens desses tempos sombrios uma incapacidade de situar-se entre o passado e o futuro. Dito de outra forma, em uma perspectiva complementar, o problema está no uso de uma racionalidade tradicional, tal como os frankfurtianos a descreveram, para enquadrar a complexidade do mundo a uma dicotomia moralizante. Tudo se resume a bem e mal, a certo e errado, a verdade e mentira. O leitor talvez se depare com esse argumento com espanto por não compreender o que há de mal nessa forma de enxergar o mundo. Esquece-se que nada na vida é tão simples e ambivalente e que, ao se enquadrar a realidade a uma forma tão reduzida, alimenta-se o risco da banalização.

Então, enxergar o mundo a partir de uma razão cartesiana implica ignorar a multiplicidade da vida. No fundo o que há nisso de perigoso é que a vontade de reduzir o mundo é no fundo a vontade de tê-lo sob controle. E nesse sentido, as ideias dos frankfurtianos não se afastam das de Hannah Arendt. Essa maneira que os homens aprenderam a olhar o mundo desde o platonismo revela um desejo de controle, uma vontade irascível de ter tudo e a todos sob comando e, diante dessa impossibilidade insuportável, resta produzir artificialmente uma realidade simples, perfeitamente controlada, para que a necessidade de iludir-se seja empreendida. Os nazistas souberam reduzir os problemas econômicos e sociais da Alemanha da primeira metade do século XX ao simplismo de uma única causa, problema cuja solução imediata estava na eliminação de todo aquele que não fosse ariano, que não fosse o povo eleito. Da mesma maneira se estrutura qualquer fundamentalismo religiosos e toda a barbárie que se seguiu ao esforço de resumir a fé a uma única verdade. Essa propensão do homem aos totalitarismos é, no fundo, o resultado de sua forma de pensar, realidade tão horrível e absurda quanto desconhecida e negada. Há no homem uma incapacidade de enxergar ao outro, mas também de enxergar a si mesmo. Mas há também um discurso iluminado, autoritário, que busca apoio a todo canto, que quer ser ouvido sem ouvir. Por isso a imagem da cegueira branca é tão apropriada para nosso tempo.

Não me parece exagero pensar que a emergência de fundamentalismos nos últimos meses seja algo tão distante do que vimos florescer na primeira metade do século XX. Temos crise econômica e social, temos crise de representatividade e temos uma mídia espetacular, bem armada para a formatação das consciências. Soma-se a isso as outras razões para o ódio levantadas anteriormente e temos um bom rol de explicações para compreender os linchamentos públicos, os discursos favoráveis à ditadura militar, o apoio a ideias injustificáveis como a esterilização de mulheres pobres ou a cura de homossexuais, e tantas outras tristes desqualificações dos discursos minoritários.

É nesse contexto que vejo o ódio ao Partido dos Trabalhadores aflorar tantos sentimentos brutais. A frase “odeio o PT” vem, em geral, seguida de uma profusão de preconceitos de classe, simplismos e preguiça de pensar. Da mesma maneira que o discurso irrefletido permite defender que o extermínio de delinquentes, homossexuais, judeus ou negros resultaria em um mundo perfeito, a extinção do PT seria a solução imediata para a política brasileira. Sem os “petralhas”, o Estado seria finalmente saneado, acabaria a farra dessa gente e, finalmente poderíamos voltar ao que era antes. O discurso é tão sem sentido e tão revelador que nos obriga a perguntar se o que tínhamos antes é o que queremos para agora. Como se o Brasil antes do PT chegar ao governo fosse uma grande propaganda comercial de margarina. Esquecemos rapidamente o país que construímos nos primeiros 500 anos de nossa história, repleto de desigualdades e imperfeições e as novas gerações, tão acostumadas à superfície e à velocidade da tela, não partilham de memória alguma.

Essa última causa é mais profunda e grave que o período eleitoral em si. É a fonte de bestialidades maiores, que evitam o avanço de causas progressistas. Por essa causa, a idiotice não é apenas uma condição passageira, uma escolha periférica entre cidadãos que dão as costas para a coletividade e mergulham no individualismo. A incapacidade de pensar faz com que a condição de idiota seja equivalente à condição humana. O grande perigo disso não está simplesmente em sermos idiotas, porque trata-se de condição reversível. O perigo está no fato de que os idiotas de hoje são portadores da cegueira branca. Sem a capacidade de pensar, de enxergar-se e de ouvir ao outro, dificilmente essa situação será revertida

Rolezinhos: causa e consequências

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Por Mc Leonardo (Fundador da Associação Profissionais e Amigos do Funk – Apafunk – Rio de Janeiro).

Minha cara autoridade, eu já não sei o que fazer,
Com tanta violência eu sinto medo de viver.
Pois moro na favela e sou muito desrespeitado,
A tristeza e alegria aqui caminham lado a lado.
Eu faço uma oração para uma santa protetora,
Mas sou interrompido à tiros de metralhadora.
Enquanto os ricos moram numa casa grande e bela,
O pobre é humilhado, esculachado na favela.
Já não aguento mais essa onda de violência,
Só peço a autoridade um pouco mais de competência.

Eu só quero é ser feliz,
Andar tranquilamente na favela onde eu nasci, é.
E poder me orgulhar,
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar.

(Eu só quero é ser feliz – Rap Brasil)

Nasci sendo vizinho dos bairros mais nobres do Rio de Janeiro, mas em um cenário de total miséria. Aos 13 anos, entendi que estava na idade de trabalhar, desci a Favela da Rocinha e consegui um emprego na Rua Visconde de Pirajá, nº 550, mais conhecido como Top Center. Essa minha atitude foi o suficiente para que eu visse o abismo que existia entre a minha realidade e a realidade de quem frequentava aquele famoso prédio em Ipanema. Final dos anos 80 e a Rocinha não era nem de longe o que é hoje. Quando eu dizia onde morava, muitos se assustavam, já que até as vendedoras das lojas tinham carro e moravam em bairros sofisticados. As pessoas aproveitavam para perguntar se tinha alguém vendendo toca-fitas de carro barato perto da minha casa, mas nunca perguntaram se havia alguém na minha família precisando de advogado, dentista ou mesmo com o sonho de querer ser um.

O tempo passou, muita coisa mudou, mas o olhar preconceituoso e o tratamento diferenciado continuam os mesmos. Se antes os seguranças dos supermercados me seguiam quando eu entrava nesses estabelecimentos desacompanhado, hoje são os taxistas que não param pra mim, pelo simples fato de eu estar usando tênis, camisa polo e boné de aba reta. Recentemente um motorista de taxi falou para mim que, na opinião da maioria deles, essa maneira de eu me vestir é uniforme de ladrão. Uma sociedade que está com medo de um boné tem que reconhecer que está falida.

Sendo eu um artista, tive através da minha profissão a oportunidade de entrar em todas as casas de show e boates da minha cidade, assim tenho casos emblemáticos de separação de classes, mais vou citar apenas um. 2005, Boate Baronetti, Ipanema, Rio de Janeiro. Toda quarta-feira rolava uma noite de Funk e muitas vezes fui cantar lá com o meu irmão e parceiro Mc Junior. Na portaria, 2 brutamontes (desses que as pessoas chamam de armário) vestidos de terno e muito bem humorados selecionavam pessoas na fila e liberavam o acesso ao estabelecimento. Fiquei intrigado com aquilo e decidi perguntar a um funcionário dessa casa como funcionava a entrada. Ele me disse que, por ser muito pequena e o evento ter atraído muita gente, a alternativa encontrada era selecionar as pessoas bonitas, ou seja, os que não estavam nos padrões de beleza preestabelecidos, mesmo que estivessem com dinheiro, não iriam conseguir entrar.

O que dizer dos condomínios residenciais, que deveriam ser proibidos por estarem fechando ruas, desrespeitando direitos básicos como o de ir e vir e mesmo assim ainda estão brotando como cogumelos em toda grande cidade brasileira? Atualmente, os bailes Funk estão sendo perseguidos por serem feitos de uma maneira que não agrada o capital imobiliário, pois fazem jovens pretos e pobres cruzarem a cidade para encontrar mais pobres e pretos. Entre tantos os motivos que levam a essa proibição, esse pra mim é o mais terrível de todos. Agora estamos diante de um fenômeno chamado “rolezinho” que nada mais é do que a massa marcar um encontro. Em qualquer lugar que esse encontro fosse marcado, isso levaria medo a população que se vê fora dessa massa, mas marcar um encontro num Shopping é pra mim algo mais que genial, é uma tacada de mestre.

O medo causado pelos jovens aos donos de lojas e as empresas contratadas para dar segurança, nos “rolezinhos”, serve para nos fazer refletir que não discutimos da maneira correta uma série de coisas. Não discutimos a maneira que as pessoas estão sendo retiradas de suas casas, na maioria das vezes a força e, no caso de São Paulo, através de incêndios mal explicados. Não discutimos a internação compulsória que, na maioria das vezes, não tem como intenção ajudar o dependente químico pobre a se libertar do vício e sim apenas não deixar feio o lugar que ele estava ocupando, porque o foco, quando as autoridades adotam essa postura, é a preservação da estética das ruas e não a recuperação do paciente. Não discutimos a militarização dos espaços públicos, deixando a mídia mentir sobre o que está acontecendo dentro das favelas, chamadas de “pacificadas”. Vejo com muita esperança essas iniciativas populares que quebram esses estereótipos. Qualquer hora dessa, de tênis, camisa gola polo e boné de aba reta, vou dar o meu rolezinho também, pois não sou de ferro!